A
partir do momento em que uma nova vida começa a (trans)formar-se, as figuras
mais significativas, em particular, e a sociedade, em geral, geram um conjunto
bem alargado de expectativas para o novo ser. Aliás, bem antes do início
(biológico) da criação já há um conjunto de variáveis psicológicas que
pretendem oferecer à nova esperança as melhores ferramentas para enfrentar os
desafios que o novo mundo lhe colocará. Tal fenómeno leva a que desde muito
novos estejamos destinados a sofrer várias influências, o que é inquestionavelmente
positivo (desde que sejam boas influências – salvaguardando todo o grau de
subjetividade que se insere nesta afirmação), porque só assim conseguimos
adquirir estruturas, conteúdos e formas necessárias à sobrevivência e à
convivência. Essas influências são baseadas em expectativas e convicções
construídas através das aprendizagens que cada um de nós vai tendo ao longo do
crescimento e desenvolvimento (isto é, ao longo da vida). Porém, apesar de não
se questionar a sua importância, deve haver uma abertura para a discussão de
algumas temáticas com o objetivo de se tentar adquirir algum conhecimento (de
preferência esclarecedor) sobre matérias concretas que pretendem ajudar-nos a
enfrentar o mundo, principalmente o das pessoas. Assim, dentro deste jogo de
influências (e das expectativas e convicções inerentes), vou partilhar convosco
uma reflexão sobre uma temática (sempre) atual, que é um exemplo real (isto é,
presente na realidade da nossa sociedade) de um tipo de influência: a
transmissão (cega) da importância de sermos pessoas perfeitas e de exigirmos a
perfeição dos outros para connosco.
Neste
jogo de influências, os indivíduos assumem posturas diferentes: por um lado, há
uma postura apoiada em princípios orientadores sérios (que não devem assumir um
aspeto sisudo) de transmissão de conhecimento (algumas consequências: maior
autonomia, capacidade de autocrítica, maior espaço para sermos nós próprios e
agirmos livremente em conformidade com o mundo que criamos, considerando,
aceitando e respeitando sempre a vivência em sociedade e as individualidades);
por outro lado, há uma postura alicerçada na transmissão de verdades
inquestionáveis (as verdades absolutas), que muitas vezes convergem com tabus e
preconceitos consistentemente intoleráveis (algumas consequências: seres pouco
tolerantes, pouco esclarecidos, com dificuldades em conviver com a diferença,
com níveis de competição ferozes, com pouco ou sem sentido de sociedade e de
comunidade, mais egoístas, menos autónomos e sem capacidade de autocrítica).
Focando-me na segunda parte, posso dizer que a prática comum de muitas pessoas
que adotam esta «filosofia educacional» espelha-se de duas formas: por um lado,
algumas dessas verdades absolutas só podem ser ensinadas, faladas e/ou
explicadas (quando não assumem um efeito procrastinador crónico – de forma
deliberada e/ou de forma negligenciada) no mínimo quando formos mais velhos,
alimentando as nossas dúvidas por um tempo indeterminado, levando-nos muitas
vezes à adoção de comportamentos cruéis ou pouco delicados para com os outros e
para connosco próprios; por outro lado, há outras que devem ser escutadas,
aplicadas e aperfeiçoadas desde tenra idade e com um grau de frequência elevado
(a repetição), levando a efeitos secundários semelhantes ao anterior. Ora, é
sobre esta última forma que me pretendo debruçar em termos reflexivos e apenas
numa das mensagens que se transmite ao assumir esta postura: a mensagem que nos
vêm passando (e que insistem ao longo da vida) da importância de sermos
perfeitos e dos outros serem perfeitos para nós (não para eles, nem para os
outros, só mesmo para nós). Apelam, exigem e pressionam a todo o custo para nos
guiarmos pela perfeição (uma busca incessante que, enquanto verdade absoluta,
nem pode ser questionada).
Desde
crianças que fomos e somos o alvo privilegiado para os adultos nos incutirem
estas medidas e/ou mensagens (teóricas) pseudoeducativas, com o objetivo de não
errarmos (tolerância zero!) em nenhum dos contextos onde estamos inseridos e
nas relações neles criadas (não permitindo também que os outros errem, pois
seria sinal de condenação à exclusão), exigindo de nós o que denominam de bom
comportamento e de excelência de performance, olhando para o «geral» (em
contraposição com o «particular»). No entanto, esse «geral» balanceia entre um
«geral real», quando há dados efetivos – mesmo que as fontes e as metodologias
utilizadas não sejam (con)fiáveis) – e um «geral imaginário», quando os dados
não existem, logo são inventados ou foram inventados por alguém (com uma prática
regular até parecem mesmo reais!). Mas, acima de tudo, o «geral» é sempre um
«geral conveniente e manipulador», como se perceberá mais à frente. Relembro
que para estas pessoas a tolerância ideal é a «tolerância zero», isto é, dentro
deste quadro de exigências (para os «alvos» e não para os «mensageiros»), se
saímos da «linha» (por poucos milímetros que sejam) comparam-nos com os
«outros» para que a nossa performance melhore (por exemplo, «Se os outros
conseguem, tu também consegues!»; «Já viste os excelentes resultados que o teu
colega e o teu irmão obtêm e o quão bem comportados são!»). É nesta fase que os
«outros» são perfeitos (modelos) e o desrespeito pelas individualidades (e
pelos seus respetivos timings de
aprendizagem) é claramente dete(s)tável. Os «outros», que dão jeito para
comparar, não são todos, mas a ideia com que se fica é que os «outros» são
(quase) todos os outros (o foco exclusivo naquilo que consideram ou desejam ser
a norma, isto é, o «geral»). Se o problema começa aqui, imaginem o quanto se
agrava quando não se consegue atingir o tal padrão desejável. O que acontece é
que, mesmo com essa mensagem «reforçadora», se não atingimos tais expetativas e
pretensões, rotulam-nos (numa ação altamente culpabilizante) de «menos
inteligentes» ou «menos capazes» (autoimpus um número limitado de carateres
nesta parte e também evitei o uso de outros exemplos/outras palavras por uma
questão de bom senso), ditando muitas vezes uma sentença para o resto da vida
(por exemplo, «Tu já não vais lá!»; «O outro é mais esperto, mais inteligente,
mais rápido, mais empenhado, e tu já não vais lá!» – às vezes, quando dá jeito,
até «sai» ao pai ou à mãe ou ao irmão mais velho que teve um percurso
«desviante», ou seja, «sai» aos seres imperfeitos, que estão bem longe da norma).
Num sentido mais superprotetor (de si próprios e não de quem se pretende
educar) encontram-se respostas que culpabilizam a sociedade e o «sistema» (uma
entidade abstrata, sem sede própria). É nesta fase que se abandona o foco da
norma da perfeição ou da perfeição da norma e as estratégias já se orientam
para os seres imperfeitos que vivem à margem da norma («Vês como eles são! Não
sigas estes exemplos! O teu caminho vai ser outro, a não ser que queiras ser
como eles!»).
No
entanto, o mais curioso é que quem incute tais exigências apenas se guia pelo
que teoricamente é desejável (para si), pois se tiverem que dar o exemplo
arranjam mil e uma justificações para o seu baixo desempenho, ou seja, eles, os
passadores de mensagens, fazem parte daqueles que não são exemplo para ninguém
(à luz das suas exigências). Curioso, não é? É a consequência da seguinte
máxima vigente durante muitos anos (e que ainda continua a vingar nos nossos
contextos, no mundo atual): «Olha para o que eu digo, mas não olhes para o que
eu faço!» (para além dos imensos preconceitos presentes dentro de cada um e da
enorme vergonha social de se ser diferente). Cultivam, assim, um discurso
«perfeito», mas a sua prática é «imperfeita». Por tal facto, esta última deve
manter-se camuflada para não mostrar que ali há uma pessoa «falhada», por não
ter atingido a perfeição. Porém, esta forma de «educar» não é com más
intenções! Não é por mal! Talvez seja por ignorância, incompetência, egoísmo,
falta de coragem e/ou comodismo intelectual. Mas, felizmente, esta atitude pode
ser reversível, através da consciência que se pode ganhar conhecendo as
consequências nefastas destes modelos, e as consequências benéficas da
consideração de modelos que valorizam a imperfeição dos seres humanos – sim, eu
sei que não é suficiente, mas é um passo importante nesta grande caminhada (ou
nesta ultramaratona). Se não acreditasse nessa mudança, não escreveria este
texto. De nada valeria criticar sem abrir caminho para a construção de um novo
e melhor mundo (que não necessariamente perfeito). Eu acredito no potencial de
mudança/transformação a este nível.
Antes
de avançar para uma maior clarificação do discurso de mudança, devo ainda falar
de outros assuntos que estão envolvidos nestas práticas, muitas vezes sendo a
origem das mesmas. Deste modo, há que ver que nem sempre estas mensagens que
nos são passadas, e que nos pretendem tornar pessoas excelentes ou perfeitas,
são consequências de atos refletidos (isto é, nem sempre são sujeitas a
qualquer tipo de reflexão) porque muitas das atitudes e muitos dos
comportamentos das pessoas não são verdadeiramente pensados. Quero com isto
dizer que são aceites automaticamente porque as «massas» fazem de uma
determinada maneira ou dizem que «é assim que se faz», ou ainda porque uma
minoria mediática e/ou elitista afirma o caminho que se deve seguir (cujos
«ensinamentos» rapidamente se tornam os espelhos das «massas») e a nossa «massa
pensante» acredita convictamente que o mais certo é o mais cómodo e o menos
vergonhoso em termos sociais (para quê complicar se tudo pode ser tão
simples!). A lavagem cerebral é tão bem feita que já nem se questiona e, por
isso, agimos automaticamente (com as «nossas» verdades absolutas, sempre
inquestionáveis aos nossos olhos – o hábito de obedecer, de não questionar e de
não refletir que nos transmitem passa de gerações em gerações). Efetivamente, o
pensamento divergente (reflexões e respostas originais e criativas, logo que
requerem esforço, empenho e dedicação) implica que assumamos as consequências
dos nossos atos, ou seja, que nos responsabilizemos pelo que estamos a dizer e
a fazer. Ora, tal situação é extremamente desconfortável porque depois não
podemos culpabilizar a falta de empenho ou capacidade dos sujeitos alvos de
«orientações educativas» ou do próprio sistema que a sociedade nos criou (poder
até podemos, mas não é a mesma coisa porque a argumentação já não se pode
ancorar às leis da normatividade). Seguir o «rebanho» é (menos perigoso e) tão
cómodo como quando alguém cozinha para nós e aceitamos tudo sem restrições e
sem crítica, mesmo que a alimentação seja prejudicial e haja um grande desleixo
com a higiene durante a confeção (mas, normalmente, com uma «brilhante» e
«limpinha» apresentação final, uma boa aparência). Aceitamos tudo (o que é dado
é sempre muito bem-vindo porque nos poupa trabalho e custos!), pedimos para
repetir (até porque não temos muito jeito para fazer de outra forma!) e ainda
aconselhamos convictamente às outras pessoas (num processo de transmissão
interpessoal completamente irrefletido e infundado). Perante este
comportamento, a questão que se coloca é a seguinte: onde está a vontade e a
liberdade para a criatividade, para a originalidade, para o «cunho pessoal» e
para o respeito pela singularidade (dado que somos seres únicos e, por esse facto,
diferentes uns dos outros), se continuamente o foco está no apoio e apelo à
normatividade (por vezes chamada de normalidade – aconselho verem os registos
históricos das consequências da consideração de normalidade e anormalidade
neste âmbito, por exemplo através da criação, proliferação e manutenção dos
manicómios ou hospícios e ainda de campos de atrocidades, que nem preciso de
especificar muito para perceberam o que estou a dizer) e na condenação de tudo
o que foge à mesma (num seguidismo absolutamente cego)? Esta «prisão» reforça
uma atitude de conformismo, de repressão ao pensamento divergente, tendo como
consequência uma grande e contínua frustração ao longo dos anos da nossa vida –
ora os «outros» são os modelos únicos a seguir (ou não seguir), ora os «outros»
são os culpados que não nos permitem ser (mais) perfeitos – e de um potencial
de perigosidade altíssimo (pelos danos que causa) ao nível individual e social.
Basta! Que tal encararmos a perfeição como um
meio (e modelo) doentio rumo a um fim inatingível e a imperfeição como um meio
(e modelo) saudável rumo a um fim imprevisivelmente satisfatório? Assim, talvez
consigamos ser mais tolerantes connosco próprios e com os outros. Se
cultivarmos esta visão nas nossas vidas, muito mudará. Tornar-nos-emos pessoas
mais respeitadoras da diferença, mais positivas, mais construtivas e mais
felizes. Estaremos aptos para convivermos com as «virtudes» e os «defeitos» caraterísticos
do ser humano e da natureza, respeitando o ritmo evolutivo e os erros de cada um
que são fundamentais para uma evolução positiva e equilibrada do nosso
desenvolvimento enquanto pessoas, desde que sejamos seres pensantes. É uma
reflexão e um desafio que vos lanço. Se pensarmos bem, a imperfeição (e os
desequilíbrios equilibradores) da natureza (cuja origem foi determinada pelo
caos) é que a torna funcional, incrivelmente bela e mágica. Portanto, se desde
muito novos formos educados para sermos verdadeira e genuinamente pessoas e nos
relacionarmos harmoniosamente com as mesmas, o mundo estará mais perto da
desejável imperfeição que gera uma beleza natural (e não artificial).
Focando-me nas relações amorosas (que num sentido mais lato podem ser todas
aquelas em que investimos), estou convicto que é um benefício fundamental para
um equilibrado crescimento e desenvolvimento humano (individual e relacional)
considerar a imperfeição das relações e das pessoas como uma caraterística
natural e desejável. As pessoas e as relações perfeitas só existem na cabeça de
algumas pessoas (e seria bom para a saúde pública que, ao existirem, não
saíssem desse espaço limitado, ou que, ao saírem, fossem automaticamente
recicladas). A imperfeição que nos carateriza permite-nos apreciar o fascínio
da surpresa, encantarmo-nos com a originalidade e sorrirmos com as pessoas
genuínas. Desta forma, as relações são naturalmente únicas, especialmente
prazerosas e incrivelmente satisfatórias porque, em vez de tentarmos seguir o
que é normativo, ilusório e irreal, abrimos caminhos para realidades
(genuinamente) idiossincráticas altamente criativas. Estão dispostos a pensar
desta forma «conservadora» (pelo espírito construtivo das relações que criamos
e mantemos naturalmente) ou pretendem continuar a agir de forma «inovadora» e
«moderna», tendo como base o descartável, o consumível enquanto dá prazer e a
busca incessante pelo modelo perfeito que é aquele que está «mesmo a sair» (que
não um pão acabado de fazer, mas um objeto ou um conjunto de padrões exigíveis
«bem» publicitados por uns sujeitos deliberadamente e diabolicamente
manipuladores)? Se o receio estiver na tristeza que será encarar a imperfeição
(como se fosse um sismo de grande magnitude na vossa vida), há uma solução
simples: produzam altos níveis de tolerância quando tiverem a definir o
conceito de perfeição e também quando quiserem incutir o mesmo nas vossas vidas
e na dos outros. Assim, encarem a perfeição como o contexto privilegiado para
seres imperfeitos, para que possam viver uma vida perfeita incutindo no
dia-a-dia a imperfeita genuinidade, ou seja, deixando de ver a perfeição como
«tolerância zero» para comportamentos que saiam fora da desejabilidade social.
Vivam o vosso mundo perfeito com estruturas, conteúdos e formas imperfeitas.
Rumem à perfeição do maravilhoso mundo da imperfeição!

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