segunda-feira, 15 de julho de 2013

O maravilhoso mundo da imperfeição



     

          A partir do momento em que uma nova vida começa a (trans)formar-se, as figuras mais significativas, em particular, e a sociedade, em geral, geram um conjunto bem alargado de expectativas para o novo ser. Aliás, bem antes do início (biológico) da criação já há um conjunto de variáveis psicológicas que pretendem oferecer à nova esperança as melhores ferramentas para enfrentar os desafios que o novo mundo lhe colocará. Tal fenómeno leva a que desde muito novos estejamos destinados a sofrer várias influências, o que é inquestionavelmente positivo (desde que sejam boas influências – salvaguardando todo o grau de subjetividade que se insere nesta afirmação), porque só assim conseguimos adquirir estruturas, conteúdos e formas necessárias à sobrevivência e à convivência. Essas influências são baseadas em expectativas e convicções construídas através das aprendizagens que cada um de nós vai tendo ao longo do crescimento e desenvolvimento (isto é, ao longo da vida). Porém, apesar de não se questionar a sua importância, deve haver uma abertura para a discussão de algumas temáticas com o objetivo de se tentar adquirir algum conhecimento (de preferência esclarecedor) sobre matérias concretas que pretendem ajudar-nos a enfrentar o mundo, principalmente o das pessoas. Assim, dentro deste jogo de influências (e das expectativas e convicções inerentes), vou partilhar convosco uma reflexão sobre uma temática (sempre) atual, que é um exemplo real (isto é, presente na realidade da nossa sociedade) de um tipo de influência: a transmissão (cega) da importância de sermos pessoas perfeitas e de exigirmos a perfeição dos outros para connosco.
Neste jogo de influências, os indivíduos assumem posturas diferentes: por um lado, há uma postura apoiada em princípios orientadores sérios (que não devem assumir um aspeto sisudo) de transmissão de conhecimento (algumas consequências: maior autonomia, capacidade de autocrítica, maior espaço para sermos nós próprios e agirmos livremente em conformidade com o mundo que criamos, considerando, aceitando e respeitando sempre a vivência em sociedade e as individualidades); por outro lado, há uma postura alicerçada na transmissão de verdades inquestionáveis (as verdades absolutas), que muitas vezes convergem com tabus e preconceitos consistentemente intoleráveis (algumas consequências: seres pouco tolerantes, pouco esclarecidos, com dificuldades em conviver com a diferença, com níveis de competição ferozes, com pouco ou sem sentido de sociedade e de comunidade, mais egoístas, menos autónomos e sem capacidade de autocrítica). Focando-me na segunda parte, posso dizer que a prática comum de muitas pessoas que adotam esta «filosofia educacional» espelha-se de duas formas: por um lado, algumas dessas verdades absolutas só podem ser ensinadas, faladas e/ou explicadas (quando não assumem um efeito procrastinador crónico – de forma deliberada e/ou de forma negligenciada) no mínimo quando formos mais velhos, alimentando as nossas dúvidas por um tempo indeterminado, levando-nos muitas vezes à adoção de comportamentos cruéis ou pouco delicados para com os outros e para connosco próprios; por outro lado, há outras que devem ser escutadas, aplicadas e aperfeiçoadas desde tenra idade e com um grau de frequência elevado (a repetição), levando a efeitos secundários semelhantes ao anterior. Ora, é sobre esta última forma que me pretendo debruçar em termos reflexivos e apenas numa das mensagens que se transmite ao assumir esta postura: a mensagem que nos vêm passando (e que insistem ao longo da vida) da importância de sermos perfeitos e dos outros serem perfeitos para nós (não para eles, nem para os outros, só mesmo para nós). Apelam, exigem e pressionam a todo o custo para nos guiarmos pela perfeição (uma busca incessante que, enquanto verdade absoluta, nem pode ser questionada).
Desde crianças que fomos e somos o alvo privilegiado para os adultos nos incutirem estas medidas e/ou mensagens (teóricas) pseudoeducativas, com o objetivo de não errarmos (tolerância zero!) em nenhum dos contextos onde estamos inseridos e nas relações neles criadas (não permitindo também que os outros errem, pois seria sinal de condenação à exclusão), exigindo de nós o que denominam de bom comportamento e de excelência de performance, olhando para o «geral» (em contraposição com o «particular»). No entanto, esse «geral» balanceia entre um «geral real», quando há dados efetivos – mesmo que as fontes e as metodologias utilizadas não sejam (con)fiáveis) – e um «geral imaginário», quando os dados não existem, logo são inventados ou foram inventados por alguém (com uma prática regular até parecem mesmo reais!). Mas, acima de tudo, o «geral» é sempre um «geral conveniente e manipulador», como se perceberá mais à frente. Relembro que para estas pessoas a tolerância ideal é a «tolerância zero», isto é, dentro deste quadro de exigências (para os «alvos» e não para os «mensageiros»), se saímos da «linha» (por poucos milímetros que sejam) comparam-nos com os «outros» para que a nossa performance melhore (por exemplo, «Se os outros conseguem, tu também consegues!»; «Já viste os excelentes resultados que o teu colega e o teu irmão obtêm e o quão bem comportados são!»). É nesta fase que os «outros» são perfeitos (modelos) e o desrespeito pelas individualidades (e pelos seus respetivos timings de aprendizagem) é claramente dete(s)tável. Os «outros», que dão jeito para comparar, não são todos, mas a ideia com que se fica é que os «outros» são (quase) todos os outros (o foco exclusivo naquilo que consideram ou desejam ser a norma, isto é, o «geral»). Se o problema começa aqui, imaginem o quanto se agrava quando não se consegue atingir o tal padrão desejável. O que acontece é que, mesmo com essa mensagem «reforçadora», se não atingimos tais expetativas e pretensões, rotulam-nos (numa ação altamente culpabilizante) de «menos inteligentes» ou «menos capazes» (autoimpus um número limitado de carateres nesta parte e também evitei o uso de outros exemplos/outras palavras por uma questão de bom senso), ditando muitas vezes uma sentença para o resto da vida (por exemplo, «Tu já não vais lá!»; «O outro é mais esperto, mais inteligente, mais rápido, mais empenhado, e tu já não vais lá!» – às vezes, quando dá jeito, até «sai» ao pai ou à mãe ou ao irmão mais velho que teve um percurso «desviante», ou seja, «sai» aos seres imperfeitos, que estão bem longe da norma). Num sentido mais superprotetor (de si próprios e não de quem se pretende educar) encontram-se respostas que culpabilizam a sociedade e o «sistema» (uma entidade abstrata, sem sede própria). É nesta fase que se abandona o foco da norma da perfeição ou da perfeição da norma e as estratégias já se orientam para os seres imperfeitos que vivem à margem da norma («Vês como eles são! Não sigas estes exemplos! O teu caminho vai ser outro, a não ser que queiras ser como eles!»).
No entanto, o mais curioso é que quem incute tais exigências apenas se guia pelo que teoricamente é desejável (para si), pois se tiverem que dar o exemplo arranjam mil e uma justificações para o seu baixo desempenho, ou seja, eles, os passadores de mensagens, fazem parte daqueles que não são exemplo para ninguém (à luz das suas exigências). Curioso, não é? É a consequência da seguinte máxima vigente durante muitos anos (e que ainda continua a vingar nos nossos contextos, no mundo atual): «Olha para o que eu digo, mas não olhes para o que eu faço!» (para além dos imensos preconceitos presentes dentro de cada um e da enorme vergonha social de se ser diferente). Cultivam, assim, um discurso «perfeito», mas a sua prática é «imperfeita». Por tal facto, esta última deve manter-se camuflada para não mostrar que ali há uma pessoa «falhada», por não ter atingido a perfeição. Porém, esta forma de «educar» não é com más intenções! Não é por mal! Talvez seja por ignorância, incompetência, egoísmo, falta de coragem e/ou comodismo intelectual. Mas, felizmente, esta atitude pode ser reversível, através da consciência que se pode ganhar conhecendo as consequências nefastas destes modelos, e as consequências benéficas da consideração de modelos que valorizam a imperfeição dos seres humanos – sim, eu sei que não é suficiente, mas é um passo importante nesta grande caminhada (ou nesta ultramaratona). Se não acreditasse nessa mudança, não escreveria este texto. De nada valeria criticar sem abrir caminho para a construção de um novo e melhor mundo (que não necessariamente perfeito). Eu acredito no potencial de mudança/transformação a este nível.
Antes de avançar para uma maior clarificação do discurso de mudança, devo ainda falar de outros assuntos que estão envolvidos nestas práticas, muitas vezes sendo a origem das mesmas. Deste modo, há que ver que nem sempre estas mensagens que nos são passadas, e que nos pretendem tornar pessoas excelentes ou perfeitas, são consequências de atos refletidos (isto é, nem sempre são sujeitas a qualquer tipo de reflexão) porque muitas das atitudes e muitos dos comportamentos das pessoas não são verdadeiramente pensados. Quero com isto dizer que são aceites automaticamente porque as «massas» fazem de uma determinada maneira ou dizem que «é assim que se faz», ou ainda porque uma minoria mediática e/ou elitista afirma o caminho que se deve seguir (cujos «ensinamentos» rapidamente se tornam os espelhos das «massas») e a nossa «massa pensante» acredita convictamente que o mais certo é o mais cómodo e o menos vergonhoso em termos sociais (para quê complicar se tudo pode ser tão simples!). A lavagem cerebral é tão bem feita que já nem se questiona e, por isso, agimos automaticamente (com as «nossas» verdades absolutas, sempre inquestionáveis aos nossos olhos – o hábito de obedecer, de não questionar e de não refletir que nos transmitem passa de gerações em gerações). Efetivamente, o pensamento divergente (reflexões e respostas originais e criativas, logo que requerem esforço, empenho e dedicação) implica que assumamos as consequências dos nossos atos, ou seja, que nos responsabilizemos pelo que estamos a dizer e a fazer. Ora, tal situação é extremamente desconfortável porque depois não podemos culpabilizar a falta de empenho ou capacidade dos sujeitos alvos de «orientações educativas» ou do próprio sistema que a sociedade nos criou (poder até podemos, mas não é a mesma coisa porque a argumentação já não se pode ancorar às leis da normatividade). Seguir o «rebanho» é (menos perigoso e) tão cómodo como quando alguém cozinha para nós e aceitamos tudo sem restrições e sem crítica, mesmo que a alimentação seja prejudicial e haja um grande desleixo com a higiene durante a confeção (mas, normalmente, com uma «brilhante» e «limpinha» apresentação final, uma boa aparência). Aceitamos tudo (o que é dado é sempre muito bem-vindo porque nos poupa trabalho e custos!), pedimos para repetir (até porque não temos muito jeito para fazer de outra forma!) e ainda aconselhamos convictamente às outras pessoas (num processo de transmissão interpessoal completamente irrefletido e infundado). Perante este comportamento, a questão que se coloca é a seguinte: onde está a vontade e a liberdade para a criatividade, para a originalidade, para o «cunho pessoal» e para o respeito pela singularidade (dado que somos seres únicos e, por esse facto, diferentes uns dos outros), se continuamente o foco está no apoio e apelo à normatividade (por vezes chamada de normalidade – aconselho verem os registos históricos das consequências da consideração de normalidade e anormalidade neste âmbito, por exemplo através da criação, proliferação e manutenção dos manicómios ou hospícios e ainda de campos de atrocidades, que nem preciso de especificar muito para perceberam o que estou a dizer) e na condenação de tudo o que foge à mesma (num seguidismo absolutamente cego)? Esta «prisão» reforça uma atitude de conformismo, de repressão ao pensamento divergente, tendo como consequência uma grande e contínua frustração ao longo dos anos da nossa vida – ora os «outros» são os modelos únicos a seguir (ou não seguir), ora os «outros» são os culpados que não nos permitem ser (mais) perfeitos – e de um potencial de perigosidade altíssimo (pelos danos que causa) ao nível individual e social.
 Basta! Que tal encararmos a perfeição como um meio (e modelo) doentio rumo a um fim inatingível e a imperfeição como um meio (e modelo) saudável rumo a um fim imprevisivelmente satisfatório? Assim, talvez consigamos ser mais tolerantes connosco próprios e com os outros. Se cultivarmos esta visão nas nossas vidas, muito mudará. Tornar-nos-emos pessoas mais respeitadoras da diferença, mais positivas, mais construtivas e mais felizes. Estaremos aptos para convivermos com as «virtudes» e os «defeitos» caraterísticos do ser humano e da natureza, respeitando o ritmo evolutivo e os erros de cada um que são fundamentais para uma evolução positiva e equilibrada do nosso desenvolvimento enquanto pessoas, desde que sejamos seres pensantes. É uma reflexão e um desafio que vos lanço. Se pensarmos bem, a imperfeição (e os desequilíbrios equilibradores) da natureza (cuja origem foi determinada pelo caos) é que a torna funcional, incrivelmente bela e mágica. Portanto, se desde muito novos formos educados para sermos verdadeira e genuinamente pessoas e nos relacionarmos harmoniosamente com as mesmas, o mundo estará mais perto da desejável imperfeição que gera uma beleza natural (e não artificial). Focando-me nas relações amorosas (que num sentido mais lato podem ser todas aquelas em que investimos), estou convicto que é um benefício fundamental para um equilibrado crescimento e desenvolvimento humano (individual e relacional) considerar a imperfeição das relações e das pessoas como uma caraterística natural e desejável. As pessoas e as relações perfeitas só existem na cabeça de algumas pessoas (e seria bom para a saúde pública que, ao existirem, não saíssem desse espaço limitado, ou que, ao saírem, fossem automaticamente recicladas). A imperfeição que nos carateriza permite-nos apreciar o fascínio da surpresa, encantarmo-nos com a originalidade e sorrirmos com as pessoas genuínas. Desta forma, as relações são naturalmente únicas, especialmente prazerosas e incrivelmente satisfatórias porque, em vez de tentarmos seguir o que é normativo, ilusório e irreal, abrimos caminhos para realidades (genuinamente) idiossincráticas altamente criativas. Estão dispostos a pensar desta forma «conservadora» (pelo espírito construtivo das relações que criamos e mantemos naturalmente) ou pretendem continuar a agir de forma «inovadora» e «moderna», tendo como base o descartável, o consumível enquanto dá prazer e a busca incessante pelo modelo perfeito que é aquele que está «mesmo a sair» (que não um pão acabado de fazer, mas um objeto ou um conjunto de padrões exigíveis «bem» publicitados por uns sujeitos deliberadamente e diabolicamente manipuladores)? Se o receio estiver na tristeza que será encarar a imperfeição (como se fosse um sismo de grande magnitude na vossa vida), há uma solução simples: produzam altos níveis de tolerância quando tiverem a definir o conceito de perfeição e também quando quiserem incutir o mesmo nas vossas vidas e na dos outros. Assim, encarem a perfeição como o contexto privilegiado para seres imperfeitos, para que possam viver uma vida perfeita incutindo no dia-a-dia a imperfeita genuinidade, ou seja, deixando de ver a perfeição como «tolerância zero» para comportamentos que saiam fora da desejabilidade social. Vivam o vosso mundo perfeito com estruturas, conteúdos e formas imperfeitas. Rumem à perfeição do maravilhoso mundo da imperfeição!

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